quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Oxidação do Raciocínio

O ponteiro cruza a circunferência do relógio a cada segundo, carregando os corpos dos minutos e das horas em seu périplo. Ele faz isso sem pestanejar; não faz caretas, tampouco emite qualquer estrilo de reclamação. Ao contrário, navega passando pelos mesmos lugares sem se fatigar da paisagem, alterada tão somente pelos céus de onde estrelas brilhantes de almas humanas fitam o tempo e dão a ele uma medida. O que o relógio é para os pequenos naturais que o habitam, o mundo parece ser para os grandes mortais que fabricam esses microplanetas mecânicos. Com efeito, todos estamos, de certa maneira, enclausurados; inseridos dentro de uma esfera que à revelia da vontade cruza o espaço empurrada por ventos gravitacionais exalados por árvores que ninguém no mundo plantou. A diferença reside no protesto em potencial. Ou nessa característica singular que permite a recalcitração.

Um homem projeta o mecanismo que move os ponteiros do relógio com precisão suficiente para lhe responder com confiança, mas não consegue antever com a mesma precisão se seu filho será capaz de guardar suas promessas. Diz a canção: “Like or unlike all my parents / I dont want to escape it”. E não se pode escapar! Uma linha muito tênue marca o fim do domínio humano; o término da concessão. Sim, pois como certos entes estatais são confiados à administração de terceiros sem, contudo, deixar de pertencerem ao Estado, assim também conosco ocorre que, tendo soprada a vida em nosso corpo, animamo-nos e nos habilitamos para dispor daquilo que, em última análise, jamais nos pertenceu, posto que não construímos ou adquirimos.

 A potência que nos permite a reclamação escorre da mesma fonte que nos habilita a tomar consciência do abismo que separa a matéria da enigmática geratriz universal. Nossa compreensão exata das coisas alcança seu ápice quando nos apercebemos quão exata é a inexatidão de respostas oferecidas ao nos confrontarmos com tudo o que existe no mundo. Damos-nos conta da insuficiência de nossas forças e, nesse estágio, passamos à escolha de novas estradas. É aqui, no início do entendimento sobre o entendimento, que o homem deve começar a encontrar o seu fim; as motivações de sua existência. Infelizmente, também é este o trevo que dá acesso à DDRL – à via que leva à degeneração do raciocínio porque este é voltado contra si mesmo e passa a se autodestruir. 

 Pífio homem! Ciente de quão pequeno se encontra em comparação com a vastidão católica tomará, geralmente, o caminho das nuvens, considerando que, existindo muito mais nos céus que em terra, razoável seja supor que haja mais a almejar nas alturas. De outra sorte, incauto o intelecto daquele que, percebendo-se incapaz de resolver toda equação, decide solucionar o problema por exclusão; como alguns poderiam fazer para representar didaticamente todo o universo dos números naturais: Ninguém tentaria fazer caber todos eles em uma folha de papel. Toda representação é realizada com base amostral. Mas mesmo nesse caso uma parte do raciocínio se transporta do campo concreto ao abstrato e se dissolve em uma espécie de vácuo espacial para definir a infinitude do conjunto; em outras palavras, o intelecto transcende o papel para manter intacta a essência do universo trabalhado. Não ocorre o mesmo com quem, no cruzamento, toma o caminho errado.

 Quem fecha a questão sem resolvê-la, abre a ponte aos carros sem terminá-la. O resultado é previsível: os carros caem no rio.

 Em algum ponto da história, o ser humano achou que deveria responder tudo e, como resultado, creu que tudo aquilo ao qual não pudesse oferecer uma satisfatória explicação concreta seria certamente objeto de uma explicação concreta sem notar o quanto paradoxal esta afirmação se transforma ao considerarmos que a asserção das explicações concretas para tudo carece de uma mesma explicação concreta para si própria. De fato, não há consequência lógica aí, porque assim como a existência do homem não dependeu de sua vontade (e nem da de seus pais, pois jamais foram capazes de prever sua concepção senão aceitá-la como possibilidade real – ninguém constrói uma vida senão contando com o obséquio fortuito, como a semente que se planta e se espera que nasça, sem nunca descartar a possibilidade de que ela pode não “pegar” – e isso vale mesmo para fertilizações efetuadas de maneira artificial), a existência de uma explicação concreta também escapa ao seu domínio. Aliás, não é sem razão que domínio tem raiz etimológica latina em Senhor. E o homem não é senhor de si mesmo; ou do mundo.

 Desorientado por sua premissa equivocada; orientado pelos preceitos de sua embriaguez intelectual, o ser humano ao se deparar com a própria ignorância sob a alcunha de inteligência, ao invés de se voltar para aquilo que complementa a imensa escuridão de sua razão, isto é, olhar para luz, exclui de sua concepção de mundo tudo o que não se encaixa. Ao invés de continuar a montar todo o quebra-cabeça, mesmo considerando a possibilidade de que nunca chegará ao fim, prefere decidir com as peças que têm em mãos gerar distinto quebra-cabeça e impor nele o seu próprio final. O resultado é desastroso. Como seria se o matemático, impedido de alcançar a outra margem dos naturais, resolvesse descartar os que estavam longe. Ao contrário do ponteiro a cumprir seu papel em sua jornada circular pelas mesmas paisagens, o homem se rebela contra seu papel em sua jornada infinita e linear por paisagens portentosas nunca antes visitadas. O ponteiro anda em círculos porque deve. O ser humano anda em círculos por livre vontade.

 Minando a certeza razoável da transcendência pela incerteza não razoável da potencial onisciência humana, o homem funde o próprio intelecto, atingindo-lhe diretamente em ponto essencial, de tal maneira que ele já não consegue mais se desenvolver e, estagnado, enferruja até que não se sustentado mais sozinho se quebra.


Thiago Amorim Carvalho
Pro Catholica Societate